terça-feira, 4 de setembro de 2012

Contos de Whisky VIII

O cansaço tomava conta de seu corpo. Havia bebido demais durante a noite inteira e tudo o que queria era uma cama pra relaxar, de preferência em um quarto onde o ar-condicionado marcasse 17ºC. Paulo Roberto era um sortudo. Filho de um dos advogados mais respeitados de São Luís, poderia ter tudo o que quisesse na palma de sua mão, a qualquer momento. Quando criança, era aluno exemplar do Reino Infantil. Adolescente, deixou as boas notas no passado e resolveu o conhecer o mundo dos boletins vermelhos, das suspensões, das brigas e da bebida alcoólica em festinhas comumente chamadas de resenhas. Tinha um bom papo com as meninas e não se permitia sair dessas bebedeiras sem beijar pelo menos umas cinco. E transar com uma ou duas, sei lá.

Morava na Ponta D’areia com os pais e tinha uma casa de praia em seu nome em Panaquatira, do outro lado da faixa litorânea. De vez em quando, chamava os amigos mais chegados para farras regadas a muito uísque e forró na mansão praiana. Já havia experimentado crack, loló, maconha e outras dessas drogas que ninguém sabe o nome. Repudiava a ideia de namorar, principalmente depois de uma experiência frustrada com Karla, que o fez de trouxa ao trocá-lo por Gabriela, a menina mais bonita, pra não dizer gostosa, do Ensino Médio da época. Paulo era “estilo namorador”, “gostosão daqui” e mais “raparigueiro” do que ele, só seu papai. Dirigia pela cidade amparado pela falta de fiscalização contra essa gente sem carteira que insiste em dizer que sabe dirigir. Uma vez fora parado na Avenida dos Holandeses, bêbado e desabilitado. Pagou 20 reais do troco da entrada cara da Second Floor ao policial gordo e barbudo e foi embora, desenhando a letra S pela pista.

Paulo Roberto não sabia o que iria acontecer, só sabia que não poderia dormir ao volante. Maldita hora em que resolveu sair do Chez Moi bêbado só pra levar aquela guria de vestido curto pra um motel na Areinha. Poderia ir pra casa, atravessar a ponte e refazer o caminho já tão conhecido em suas noites de menino ébrio. 21 anos e nada de aprender com a vida. Sábado era dia de esquenta com os amigos e depois Candy “só pra ouvir a boa música eletrônica que toca por lá”. Domingo, após acordar ao meio-dia, sua maior indecisão seria escolher entre Trapiche ou Chama Maré. Segunda, novamente acordar tarde, ver suas notificações do Facebook e ir pra aula de Direito no CEUMA, agora Universidade. Paulo era o típico estudante de Direito que fazia tudo errado. Mas as meninas gostavam, então era isso que importava.

Com Isabella era bem diferente. 18 anos, moradora da Cidade Operária, filha de um pedreiro e uma costureira. Bem clichê, eu sei. Mas o que não é clichê nessa vida? Prestes a terminar o Ensino Médio, mesmo depois de uma greve que estragou seu 2º ano, Isabella só pensava em fazer o ENEM  e conseguir passar para o curso de Letras na UFMA. Estudava no Liceu Maranhense e enfrentava horas de congestionamento em um ônibus velho e apertado que nada tinha de Tropical e que nem São Francisco dava jeito. Apesar de tudo, ia cedo para a parada a fim de encontrar um lugar para sentar e ler seus romances de adolescente. Tinha lido todos os livros da saga Crepúsculo e os lia rápido com a intenção de devolvê-los para seus donos. Lembro a alegria da menina Isabella ao entrar pela primeira vez em um cinema e ver aquele Edward materializado em um ser humano. Era parecidíssimo com o galã que havia imaginado – e que a Stephenie Meyer fez tanta questão de descrever.

Namorados? Isabella teve uns dois. O primeiro, seu vizinho, era um bom rapaz, mas Isa sempre desconfiou de sua fofura e gosto por coisas de meninas. Vivia elogiando suas roupas e esmaltes, além de adorar filmes como Meninas Malvadas e Legalmente Loira. Tempos depois, se assumiu homossexual e hoje namora um desses bombadões do Renascença. O segundo namorado foi a paixão arrebatadora de uma menina, desses príncipes encantados que elas sempre falam. Namoraram por 2 anos e o ciúme excessivo prejudicou todo o resto. Davam-se bem, apesar de ele não querer saber de estudar e ela viver grudada aos livros. Vaidosa toda, economizava o que podia para comprar as roupas mais bonitas na feira do bairro. Me esqueci de falar: Isabella adorava a Rua Grande.

Frequentemente, entrava em um ônibus sem destino específico. Encostava a cabeça na janela e  começava a imaginar uma vida diferente. Passava pela Jerônimo de Albuquerque e selecionava os lugares que um dia pretendia conhecer, principalmente as pizzarias do Vinhais. Pensava que tudo mudaria quando começasse a faculdade. Logo arranjaria um emprego e ganharia independência, eximindo seus pais da necessidade de bancá-la. Adorava as vidraças da UNDB e sonhava em um dia ter grana suficiente pra fazer um segundo curso por lá - quem sabe Direito, sua segunda paixão. De vez em quando, descia no Tropical/Monumental Shopping e perdia horas, ou sentada na praça principal admirando os transeuntes ou na Nobel lendo os primeiros capítulos de livros que ela não podia comprar – ainda.

Isabella nunca havia bebido e a primeira vez seria hoje, agora, nesse exato momento. Noite de sexta-feira. Paulo Roberto acabara de tomar seu primeiro drink na boate do Reviver e Isabella ouvia o primeiro reggae no Porto da Gabi.  Como aquela morena gostava de um reggae. Nascida na Jamaica Brasileira, deixava suas tranças e seu rebolado dominarem todo aquele corpo, delgado, cor do pecado... Não era difícil um homem se aproximar. Isa, meio tímida, não sabia como lidar com a situação. Esquivou-se, protestou, mas acabou dando um beijo no rapaz já meio bêbado. Mais cerveja de um lado, mais “bombeiro” do outro. Paulo e Isa beijavam e espantavam os mesmos fantasmas, mesmo com vidas diferentes e sem ao menos se conhecerem. Trágico destino, responsável pelas maiores desgraças do mundo, até daquela que se chama amor.

Paulo Roberto começou a encarar a loira de vestido sedutor. Ela retribuía seus olhares e em menos de 1 minuto, os dois estavam entrelaçados por línguas e mãos. A menina tinha sede por sexo. Deixou que os dedos de Paulo percorressem seu corpo de academia por espaços nunca antes desbravados por qualquer homem – nem mesmo por aqueles da sexta e do sexo passados. Isabella misturava sensações e bebidas como se misturam letras ao escrever um texto. Eu observava os dois, como se fosse possível estar em vários lugares ao mesmo tempo. Paulo queria mais e Isabella começava a achar que já era demais. Maldita hora em que sua prima resolveu comemorar o aniversário naquele bar do Aterro do Bacanga.

O cansaço tomava conta de seu corpo. Isabella havia bebido demais durante a noite inteira e tudo o que queria era uma cama pra relaxar, de preferência em um quarto onde o ar-condicionado marcasse 17ºC. Chamou a prima, que a essa altura já estava apaixonada por um cara do Coroadinho, e ordenou, cambaleando, que fossem embora. Paulo Roberto e Renata giraram a roleta e saíram da casa noturna à 1h16. Paulo prometeu levá-la a um lugar inesquecível e ela já sabia o quanto motéis eram inesquecíveis. Andou pelas ruas de pedra e chegou ao estacionamento da Praia Grande onde seu carro estava. Já tinha carteira, mas não tinha juízo. A moça se alegrou quando viu aquela Hilux e ficou um pouco mais excitada. O que o dinheiro não faz, né?

1h16. A prima de Isabella pediu uma água e um tempo para se despedir do rapaz. Trocaram telefones e se beijaram por mais alguns minutos. 1h28. Paulo Roberto ligou o carro e saiu em disparada sentido Areinha. Isabella e a prima atravessaram o Aterro na intenção de pegar um táxi em uma fila de carros do outro lado da avenida. Maldita escolha. Poderiam ter pedido outra água, ouvido mais uma música, a prima da garota poderia ter dado mais um beijo, Isabella descansar sentada em uma mesa, mas não. 1h30. Paulo Roberto piscou e forçou os olhos sucessivamente a fim de se manter acordado e sequer percebeu a aproximação de duas pessoas quando passava em frente ao Aterro do Bacanga.

Atropelamento com vítimas, carro amassado, curiosos e um rapaz atormentado. Sangue sobre a avenida e álcool no sangue. Dos dois, dos três, dos quatro. Quatro infelizes que estavam apenas se divertindo. A prima de Isabella já não respirava quando a primeira ambulância chegou. Morreu comemorando o aniversário. Cumpriu sua sentença. Paulo Roberto, atordoado que estava, não quis envolver Renata na história. Pagou um táxi para a garota, o mesmo que Isabella pegaria, e a fez sumir. Era como se todo o sono acumulado tivesse ido embora ao ver aquela bela morena quase desfalecida no chão. Ligou para os pais, ouviu esporros e esperou que viessem madrugada adentro.

Isabella estava mal. Com os olhos abertos, olhava a lua, clara e cheia como deveria estar. Sentia as piores dores e só pensava nos pais, pobres miseráveis que, provavelmente, só saberiam de toda a desgraça na manhã seguinte. Foi quando o olhar bucólico de alguém a acertou. Paulo Roberto, em um misto de tristeza e pena, admirava a garota e repetia insistentemente a palavra “desculpa”. Isa queria dizer alguma coisa, mas se limitou a gemer de dor. Polícia, ambulância, a prima morta. Tudo tão rápido feito a cadência de seus sonhos. Não sabia do futuro. Não sabia se iria pra UPA do Itaqui-Bacanga, pro Hospital Geral ou pro Socorrão. Estava entregue ao acaso.

Os pais de Paulo Roberto chegaram e pediram que a ambulância seguisse para o hospital particular mais próximo do local do acidente. Arcariam com as despesas e consequências. Paulo, preso, seguiu para a delegacia. Prestou depoimento, pagou fiança e foi imediatamente ver a moça acidentada. A morena havia quebrado a perna e fraturado uns dos braços. Naquele momento, Paulo pensou em mudar. Pensou em ser mais responsável, mais estudioso, menos displicente. Era como se tivesse tomado um choque de realidade ao ver aquela moça, inocente e desconhecida, sofrendo.

Isabella sofria por ele sem ao menos saber disso. Seria sua redenção, de todas as formas possíveis. Ao acordar e ver os pais chorando no quarto daquele hospital, só pensava em seus sonhos. A família de Paulo pediu desculpas à família de Isabella e prometeu dar uma ajuda para cobrir os custos com remédios além do pagamento da conta do hospital. A mãe da garota disse que não aceitaria, que dinheiro nenhum traria a vida da sobrinha de volta e praguejou contra o irresponsável do Paulo Roberto. Isabella pedia calma e uma conversa com o rapaz.

De cabeça baixa, Paulo Roberto entrou no quarto branco e pediu as mesmas desculpas de horas antes. Isabella perguntou o que havia acontecido e ele tentou explicar, omitindo a intenção de ir ao motel com a loira, é claro. A garota contou que tinha ido comemorar o aniversário da prima, bebeu demais e o resto vocês já sabem. Ambos tinham bebido demais. Ambos tinham anseios demais. No final das contas, somos iguais quando estamos unidos por sonhos iguais. Paulo Roberto entendeu que responsabilidade não tem nada a ver com ficar trancado em casa em uma sexta à noite assistindo ao Globo Repórter. Isabella, por sua vez, a cada nova conversa com o amigo atropelador, descobria partes de São Luís que ela jamais pensara existir. A única cabana do sol que conhecia era o guarda-sol de praia que seu pai tinha ganhado de uns patrões antigos para cobrir uma parte do telhado quando ainda chovia demais.

Paulo Roberto e Isabella são a síntese de coisas que acontecem todo dia nessa cidade quatrocentona. Gente diferente que se esbarra nos coletivos, nas festas, no trabalho ou na rua mesmo. Amanhã, quando você sair de casa, pense nos outros como pessoas capazes de acrescentar conteúdo em sua vida. Não espere que algo ruim aconteça para dar a devida importância em quem está ao seu redor. Não moramos em uma porção de terra cercada por água de todos os lados. Moramos em uma porção de terra cercada por gente de todos os lados. Não naufrague no Rio Anil como Paulo Roberto provavelmente faria se continuasse com seus velhos hábitos. A história dos dois fica em aberto, como a minha, como a sua. Final feliz? Me atrevo a dizer que bebem vez ou outra. Doses de amor.

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