Débora. 28 anos, advogada, viciada em sapatos e carente.
Acostumada a um mundo de facilidades, teve tudo do bom e do melhor desde que se
entendeu por gente. A boneca mais cara, o estojo multicolorido, a melhor
escola, a melhor universidade privada do estado, etc, etc, etc. Frequentava
baladas da elite ludovicense à procura de um cara que a fizesse trocar o
trabalho no escritório por uma viagem de lua de mel na Argentina. Sonhava com
um advogado másculo e competente, alguém pra dividir seus anseios e seus
projetos jurídicos.
Ele. 25 anos, desempregado, viciado em crack e morador de
rua. Acostumado à falta de oportunidades, teve todas as portas fechadas desde
que aceitou fumar a droga oferecida por um vizinho. Viu a mãe desesperada, o
pai atropelado, o irmão mais novo também viciado, a polícia truculenta, etc,
etc, etc. Frequentava as ruas, avenidas e rotatórias à procura de comida e
companhia, na intenção de esquecer o vício por alguns minutos. Sonhava com
alguns trocados a mais naquela intensa tarefa de limpar para-brisas.
Não, eles não se apaixonaram. Débora abriu a porta do carro.
Ele se espantou com a luz do sol. Débora deu a partida, ele guardou as caixas
de papelão que lhe serviam de coberta. Débora, contente, ligava o rádio e ouvia
Selena Gomez no programa da manhã. Ele queria um café da manhã. Débora parou no
sinal vermelho, ele entrou na padaria. Débora fazia planos mentais para o dia,
ele perguntava quanto custava o pão com manteiga. Débora infringia a lei
atendendo o celular enquanto dirigia. Ele era humilhado dizendo que não poderia
pagar aquela refeição. Débora distraída, ele rouba comida e sai correndo pela avenida.
Débora o atropela e ele vai parar a uns 300 metros de distância. Débora,
apavorada. Ele, morto!
Por um instante, aquelas vidas se encontraram. Poderiam ter
vivido um grande amor, desses que vemos diariamente em todos os lugares. Débora
se tornaria mais humana, ele passaria a ter perspectiva na vida, Débora
sofreria um bocado tentando livrá-lo do vício, ele seria pai de uma criança
linda e educada e você me diz que isso é utopia. Talvez. Amar é a mais bela
utopia que existe. Acreditar no amor, mesmo quando ele tem todas as chances de
dar errado, é igualmente louvável. Tentativa, meu caro. Nada de atropelar
pessoas e sentimentos.
Débora quis saber o nome dele. Não havia nome. Desconhecido,
conhecido e chamado de ‘Ele’. Cochichos diziam ‘menos um ladrão’. Bocas
sussurravam ‘era vagabundo, vivia roubando pela redondeza’. Débora se sentiu
aliviada. Não seria presa, não teria a vida profissional manchada e apenas prestaria
depoimento na delegacia mais próxima. Vida besta que segue. Afinal, ‘menos um
vagabundo’. Afinal, menos uma história de amor e mais uma de egoísmo. Onde
nosso próprio umbigo vale mais do que massa encefálica espalhada pelo chão da
avenida.
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